reflete: "Nossos mortos não estão mais naquele vôo. Estão em nossas casas"
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Fabrício Carpinejar
Não pode identificar os nossos mortos, identifique a nossa dor. Só isso 
que peço. Identifique a nossa dor antes que ela se transforme em pavor, 
em pânico, em doença. Nossa dor é o que há de mais fiel ao corpo do 
passageiro. Escute a ansiedade cardíaca de nossa dor: ela vive uma morte 
que é o jeito que encontramos de continuar vivendo.
Não é uma aliança, implante de platina ou um objeto que nos dirá que é 
ele. É a nossa dor.
A nossa dor carbonizada. A nossa dor destroçada. A nossa dor atropelada. 
A nossa dor que não tem um rosto do filho, do pai, da mãe, do irmão, da 
mulher, do marido, do amigo para se despedir. Talvez não entenda a 
importância de passar os dedos no nariz do morto, nas pálpebras do 
morto, nas orelhas do morto, no pescoço do morto, nos cílios do morto, 
na boca do morto e consolar:
— Vá em paz.
Que hoje não temos nem paz para doer. Não há nem como completar uma 
ave-maria, um pai-nosso sem esquecer metade da reza. Rezamos rápido para 
lembrar a letra, e não adianta. Pensamos tão rápido que não desejamos 
pensar. Temos fé, mas não temos um lugar seguro para pousar as palavras.
O filho que fica, o filho órfão desses acidentes, vai passar frio o 
resto da vida. Frio porque não terá um pai ou uma mãe a insistir para 
colocar o casaco ao sair. Frio porque não terá um pai ou uma mãe para 
cobrir seus pés de madrugada.
Frio porque o caixão paterno e materno estará sem vidro para a criança 
fazer desenhos com a respiração. Sem nenhuma vidraça para desenhar o 
caroço de um coração. O caroço. Porque nossa dor é caroço de uma polpa 
que não existe mais. De um suco que não existe mais. De uma árvore que 
não existe mais. Só há caroço no lugar do coração. Um caroço apertado 
como um dente doendo, como um dedo preso eternamente numa porta que não 
abrirá.
Frio de osso, frio porque o pequeno terá de completar a memória que 
falta com a imaginação.
Identifique a nossa dor, nossos mortos não estão mais naquele vôo. Estão 
em nossas casas. Venha entrar em seus quartos. Não tivemos coragem de 
informar às suas roupas que eles não vão voltar. Permanecem aguardando 
no cabide a força dos trilhos. Você precisa descobrir o que foi a vida 
de cada passageiro para entender a importância de sua morte. Tomar café 
da manhã com o passageiro morto, almoçar com o passageiro morto, jantar 
com o passageiro morto, para entender que ele não é uma exceção. Ele era 
toda a esperança de quem fica.
Quantos cadernos escolares ficarão sem assinatura dos pais? Quantas 
formaturas ficarão com assentos vazios? Quantos pequenos terão vergonha 
de escrever como foram suas férias para seus professores?
Não deve supor o que é mexer na agenda de um pai ou de uma mãe e ver 
todos os compromissos do mês de agosto como se fossem acontecer. O que é 
revisar as fotografias para conversar em segredo, baixinho, entre a 
loucura e o medo. O que é deitar na cama deles para cheirar os 
travesseiros. Cheirar as fronhas com ganas de abraçar.
O que é dizer está tudo bem para não desvalorizar a tristeza.
O que é ouvir suas vozes ainda na secretária telefônica:
— Embarcamos no vôo 3054, retornaremos em breve. Te amamos.
E escutar centenas de vezes a mensagem para descobrir alguma diferença 
sutil de um som a outro. Tentar achar alguma ameaça no tom, um 
pressentimento. E concluir que eles não anteviram nada de errado. Nada 
estranho. Errado e estranhos são os que brincam em transferir a 
responsabilidade. Não foi um acidente aéreo, foi um acidente ético. Uma 
catástrofe ética.
Eles só foram viajar, você entende? Eles só desejavam estar em casa, 
entende?
Identifique primeiro a nossa dor, respeite a nossa dor, os mortos estão 
reunidos na frente do rádio de nossa dor para esperar os seus nomes.
Minha dor, eu entrego a Deus. Mas minha raiva, essa raiva de querer 
viver quem eu amo até depois de sua morte, está aqui, quente do meu 
hálito, à sua espera.
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Publicado no Correio Braziliense, Especial Vôo 3054, Editoria Brasil, 
Brasília, domingo, 29 de julho de 2007
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