Os filhos não desanimam o casamento. Eles nos ensinam novamente a casar.
Sei que não é razoável o que estou afirmando. Não sou razoável, alguém 
deseja ser?
Razoável é sentenciar que os filhos tiram o tempo do namoro, interpelam 
a todo segundo por banalidades, brigam quando estamos lendo, atendendo 
ao telefone ou concentrados. Razoável é concordar que não há com quem 
deixar as crianças em mais de uma noite para sair e os programas 
tornam-se mais caseiros, a falta de opção converte os incansáveis 
sedutores em amigos dorminhocos. O frio, um DVD, o cansaço do trabalho 
são desculpas para não tentar algo diferente e superar a escassez de 
assunto numa mesa de restaurante. O risco da separação aumenta porque o 
amor não é mais prioridade.
Mas não consigo confiar nessa hipótese. Os filhos estão nos oferecendo 
aulas de graça (força de expressão; trata-se de fiado, um dia eles cobram).
Vicente me prepara para ser um bom marido. Com seus cinco anos. E sua 
timidez carismática.
Não dependo de muita concentração. É seguir seus gestos. Virar um mímico 
em minha casa. Um clown de suas pausas e feições.
Eu me preparei para assistir ao jogo do meu time no estádio. Fazia frio 
(6º), a noite ia alta e teria uma estrada pela frente. Convidei o 
Vicente, com a certeza que aceitaria no ato, logo agradeceria e correria 
ao quarto para se fardar. Porém, ele me questionou:
- Que horas vou voltar?
- 1h, acho.
- Desculpa, pai. Mas vou pegar a mãe dormindo, e quero ver sua boniteza 
acordada.
Notei que ele roubou minha fala. Era a resposta perfeita de marido. A 
frase consagradora. Compensaria uma louça empilhada, uma toalha molhada 
na cama, um pote de xampu virado, divorciado da tampa, o azedume no 
almoço da sogra, a lâmpada que não troquei na área de serviço. O filho 
me substituía enxergando a minha demora. Se sua mãe não estivesse 
escutando, cometeria um plágio sem pudor.
Ao sair, enxergo o guri no quarto, com uma vozinha esquisita, abafada, 
de marionete. Intuí que estivesse brincando com seus bonecos, falando 
por eles, como criança gosta de fazer para povoar a solidão. Mas 
conversava com sua mãe. Interrompi.
- Que voz é essa, Vicente?
- Voz? A minha!
- Não, nunca usou essa voz comigo. É uma vozinha dodói, diferente.
- É a voz que uso com a mamãe. Tem uma voz para cada amor.
Espantei-me. Ele seqüestrou pela segunda vez a minha parte no roteiro. 
Descobri que utilizo a mesma voz com a minha mulher, e deveria ser 
outra, para ela não me confundir comigo mesmo.
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