Filho, Minha Filha", Fabrício Carpinejar oferece sua versão para a
aventura de ser pai e de ser filho no século 21
Meu Filho, Minha Filha (Bertrand Brasil, 144 páginas, R$ 28), o livro 
mais recente de Fabrício Carpinejar, passeia pela parentalidade, esse 
caminho de se tornar pai e mãe. Não o faz com intenção, não premedita.
Faz poesia simplesmente, e é aí que o texto se parentaliza. Na primeira 
estrofe, canta: "Meu filho, meu filho / volto a te recolher deitado / no 
azulejo frio". E é assim, criando o cenário de sons como esses, que a 
aventura de pai (ou mãe) inaugura-se. Porque desconfiamos, já com fortes 
suspeitas, de que começamos a ser sob a forma de um apego. Que é feito 
de desejo e olhar, mas logo vem a linguagem provar que estamos separados 
e nos inunda de assonâncias (frio e filho) e aliterações (filho e frio) 
e silêncios entrecortados pela música. A linguagem quer restabelecer o 
calor. Precisamos ser ponte de prosódia com mãe (ou pai) para ser. 
Tivemos de ser música um dia, portanto, poesia. Meu Filho, Minha Filha é 
poesia desde o começo, na musicalidade de cada verso, mas também no 
livro como um todo, que retoma o estilo do autor, adepto do poema longo. 
Ser pai, ser mãe é longo. E é ritmo como o de cada poema ali impresso, 
sobretudo, na intercalação constante de um poema para o filho (Meu Filho 
Comigo) e outro para a filha (Minha Filha Sem Mim).
Ser pai, ser mãe já estaria desenhado nessa aparente falta de 
significado, amparada pela melodia, como é o começo de uma vida de filho 
ou pai. Mas como reconhece o autor, em um de seus versos, não fomos 
feitos com a perfeição do cavalo; já no primeiro ano dessa vida, 
começamos a balbuciar, desesperadamente, em busca de sentidos.
Meu Filho, Minha Filha não o toma com intenção. Mas vai, a cada página, 
ritmando sentidos do que hoje se pensa e se expressa para o trajeto de 
tornar-se pai e mãe. Poucos sons depois de seu começo, encontramos os 
versos lapidares: "Não há água benta na bacia, apenas a sede de uma 
família /que se espalhou por medo." Cantando, Carpinejar encontra uma 
verdade que enxergamos no cotidiano de quem ouve pais e filhos dentro e 
fora de nós: encontrar o filho é encontrar o filho que fomos, é 
reencontrar-se com o bem e o mal do que (não) passou. O passado sai de 
seu lugar e, à beira desse futuro, tudo é presente. A psicanalista 
Monique Bydlowski chama esse trajeto de transparência psíquica. Porque 
nada nos retira tanto do opaco ou das defesas do que um filho. Esse 
filho, essa filha que recebem desse pai o olhar, a empatia, a palavra, 
filtros para os dentes de um passado, sempre disposto a morder afiado e 
pontiagudo. A mesma transparência psíquica que se escreve mais adiante: 
"És meu filho e o pai que não tive, /ou o filho que ainda não nasceu". 
Sem digestão de passado, a poesia tranca, mas aqui ela digere e flui 
como as vidas que destrancam em quem se propõe a cantar.
As mordidas doem menos se houve o que há em Meu Filho, Minha Filha: 
olhar, empatia, palavra. O resultado é imagem, metáfora, poesia aos 
borbotões como em uma vida bem amada e expressada. Um exemplo: "Meu 
filho, meu filho, /suave e manso filho, de cílios maiores /do que a 
ponta dos dedos..." O psicanalista Serge Lebovici chama isso de empatia 
metaforizante. Fomos feitos, enfim, para a acolhida e, acolhidos, 
criamos. Esse é o livro de um pai que acolhe filho e filha e jamais será 
abandonado pelo símbolo.
Meu Filho, Minha Filha aproxima-se ainda mais do que é ser pai e ser mãe 
no século 21. Porque o amor de que fala não é o do século 19, 
idealizado, trágico ou romântico. Ou o do 20, acomodado em suas velhas 
formas. O amor de que fala é imenso e humilde, vagaroso e progressivo: 
"Até para ficar em pé com o filho, /o homem tem que se preparar." É amor 
desajeitado, como expressa ("enraiveço /de tanto amor desajeitado") e 
como amamos quando amamos sem cobranças de amor maduro (e falso), que 
nos faz, mães e pais, com alta prevalência de depressão pós-parto.
Meu Filho, Minha Filha é um livro novo, de uma família nova, recomposta, 
reconstituída, repleta de discórdias, desencontros e acusações tal qual 
uma família antiga. Contra os solavancos dessa condição - ser réu de 
filha, perder-se em críticas, sobrar na dor dos filhos, chamados 
feiamente de meio-irmãos - , Carpinejar conta com o antídoto antigo de 
propor olhar, empatia, palavra. Assim é que vai achando, a cada verso, 
uma nova representação, aproximando a tarefa do poeta à da criança 
(Freud), que é brincar, inovar, criar; cria versos inéditos, achando 
nome para a dor de tantos pais (homens) que não cessam de procurar, 
desesperadamente, o seu lugar: "Eu não te eduquei, não te corrigi em 
seqüência, / sou o pai que vai voltar tarde. / Tudo o que ensino / não 
tem uma segunda-feira."
A todas essas, Meu Filho, Minha Filha nos conta o que já sabíamos, sem 
nos autorizarmos a dizer sob a patrulha dos exigentes: como é difícil 
ser pai nessas ou em quaisquer outras condições: "Não há como pedir que 
entendas a verdade. / A verdade é passar / fome ou frio na linguagem." 
Ao mesmo tempo e sem receitas, essa aprendizagem longa e inacabada passa 
por poder contar-se, e o livro conta: "Meus pais brigavam, / a mãe se 
trancava no quarto // e o pai se trancava no escritório. / Sentava na 
sala entre os dois aposentos / com pavor de tomar partido." Como é 
difícil ser pai, olhar o pai que tivemos, separar-se do filho que temos, 
que entra na creche, da filha, que entra na adolescência, e o pai 
permanece na medida em que suporta ausentar-se, perder, mais adepto das 
separações que dos encontros: "Te deixei mais ir do que vir."
E como é difícil ser filho: "Treinei para ser pai. / Queria ser logo pai 
/ para deixar de ser filho". Contando é que o filho se esvazia para 
ficar repleto do pai que pode ser e é; salta de filho para pai, e a 
confissão salta de confissão para poema, porque houve linguagem entre a 
empatia e a metáfora (Lebovici), entre o silêncio e a sonoridade. É 
quando confessa que nada fez por si - fazia-o pelos pais - até os 25 
anos, que se torna livre para ser poeta e pai. E ambas as trajetórias - 
a de um pai e a de um poeta - precisam do mesmo caminho, que é brincar: 
"Eu te divirto, sem querer", canta, a certa altura, o pai poeta. Entre 
empatia e metáforas, ele soube fazer sons e significados que o fizeram 
capaz de juntar-se e separar-se de seu filho. E dar lições de apego e 
desapego do olhar ao toque: "Não dependo de toda a mão para te manter 
perto de mim."
O que mais gosto desse livro é que ele aceita ser triste para 
desprender-se da tristeza e chegar no belo, no alegre. Transmitindo a 
idéia de que, se olharmos e dissermos com empatia, não há século 21, lei 
materna ou gravidez na adolescência, que impeçam ser pai de ser tão 
prazeroso como ir à praça ou à arte.
Já no final, Meu Filho, Minha Filha dá novo sentido para quem pensa e 
sente a parentalidade. E sugere que quem olhou e contou (com afeto) pôde 
filiar-se. Mais ainda: ser pai de um filho que, no sagrado desse ritmo, 
há de ser pai um dia.
Que pai e arte autênticos como esses prometem transmissão e duração. 
Assim, retornamos ao começo do livro, onde um poeta, mal saído dos 30, 
dedica o que criou para os seus netos. E, nessa dança bem-sucedida de 
passado, presente e futuro, não está mentindo.
* Psiquiatria da infância e escritor, autor de, entre outros livros, "A 
Almofada que Não Dava Tchau!"
(Publicado em Jornal Zero Hora, caderno Cultura, página 03, Porto 
Alegre, 11/08/07. Edição nº 15330)
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